Apartamento 172

Passado o primeiro impacto de me deparar com o Ruben parado na porta do apartamento, usando terno, de cabelo cortado e sorridente, finalmente, chegamos ao casamento de minha amiga Jô. No caminho, eu pensei em fazer elogios pela performance visual do Ru (como eu o chamo quando não estou sentindo ódio dele), mas certamente eles seriam recebidos com um daqueles silêncios constrangedores que só ele sabe me proporcionar. Por isso, evitei qualquer palavra fora do lugar.

A cerimônia foi rápida. Mas não tanto quanto eu gostaria. Assim que o padre começou a explicar a origem da palavra aliança, eu bocejei e arranquei pontas duplas do meu cabelo. Os meus movimentos, por sinal, foram proporcionais aos do Ruben, que passou o tempo todo na igreja tentando fazer qualquer coisa indecifrável no celular.

Na festa, sentados numa mesa para sete ou oito pessoas, nós nos sentimos incrivelmente desconfortáveis nos primeiros setenta e cinco minutos, por causa da necessidade de dividir a mesa com gente desconhecida. A falta de assunto reinou no ambiente, apesar de todo o meu esforço. Eu num sei quem foi que inventou que mesa em festa de casamento deve ser para tanta gente.  Será que os organizadores acham que as pessoas vão em caravana para esse tipo de evento? Ou será que eles acham que todo mundo se conhece? Num sei.

O outro problema, e mais grave, acontecia sempre que alguém perguntava se nós – Ruben e eu – namorávamos, éramos casados ou qualquer semelhante a isso. O Ruben ficava mais vermelho que as flores que enfeitavam o ambiente. Ele sentia vontade de morrer de tanta vergonha e eu, obviamente, com toda essa sociabilidade que a vida me deu, sorria e dizia ‘não’, acompanhado de qualquer comentário do tipo: “a festa está linda”, “os noivos serão felizes”, “confortável aqui, não é mesmo?”. Eu li em algum dos meus livros de etiqueta, comprados em sebo, que frases desse tipo preenchem vazios e cortam qualquer conversa desagradável.

Quando eu achei que as coisas estavam melhorando, chegou o momento de jogar o buquê. A noiva gritou, vociferou no microfone, o nome de algumas solteironas convictas, dentre eles, o meu. Eu fingi que tinha alguém me chamando no banheiro e saí de perto o mais rápido que pude. Ao olhar para trás, vi o sorriso de canto de boca do Ruben, se divertindo com a minha cara.

Casamento é evento social delicado que movimenta o imaginário de muita gente. Porém, as coisas pioram quando se é mulher, se tem quase 30 anos e nenhum pretendente, nem que seja, pra um sexo casual. Mas já que é necessário enfrentar esses eventos , eu prefiro que seja com discrição. Não vejo necessidade nenhuma de ficar no meio da festa, ao lado de outras 200 moças tão solteiras quanto eu, brigando por flores. Decididamente não.

Três horas depois o jogo acabou pra nós. Ou melhor dizendo, a festa acabou pra mim e pro Ruben. Com uma piscada de olho, eu entendi que esse era o sinal pra sairmos dali. Eu confesso que essa num foi a melhor festa da minha vida, mas valeu a pena só pela tentativa do Ruben de ser sociável e de dançar comigo ao som da música I say a little prayer for you. Exageros a parte, a gente quase fez uma cena do filme Casamento do meu melhor amigo.

Já em casa, antes de entrarmos cada um em seus quartos, eu agradeci pela companhia e, finalmente, tive coragem de elogiar a performance visual do Ruben.

__ Você estava bonito hoje. Muito bem vestido.

__ Obrigado.

__ Gostei do cabelo cortado também.

Sorrindo, ele apenas disse:

__ Não se esqueça de apagar a luz da sala. Boa noite.

____ Não vou!

Meus diálogos com a Malu estavam restritos a esse mesmo tema. Aliás, o tema era o casamento de uma amiga imaginária, pois eu nunca dei notícias de pessoas reais próximas a ela. Tudo que eu sabia que ela tinha eram sapatos e quinquilharias que sobrecarregavam o seu quarto.

Ela insistia incessantemente que deveria acompanhá-la a tal casamento. Todo tipo de argumento plausível e indecente ela utilizou. As piores eram as promessas incumpríveis, como a de arrumar o apartamento diariamente por três meses. Ou de alimentar o Tzu até o fim da vida do pequeno. Sempre que essas investidas eram praticadas eu conseguia visualizar o apartamento sendo invadido pela vigilância sanitária ou o Tzu com seus dias de vida reduzidos a poucas horas, por excesso ou falta completa de ração.

____ Não vou!

Quando eu perguntava se ninguém mais podia fazer seu par na ocasião ela iniciava gigantescos monólogos detalhando a homossexualidade de alguém, a cornice de não sei quem, a rebeldia de fulano. Depois disso os relatos eram transformados em baldes de elogios direcionados a mim, que, de tão exagerados, necessitavam de palavras que eu nem sabia que existiam.

____ Não vou!

O casamento aconteceria em uma sexta-feira, mas na segunda-feira que antecedia o evento a Malu me deu paz. Definitivamente ela havia desistido de me colocar naquela posição, provavelmente por ter encontrado alguém disposto a ser o seu pinguim.

Puro engano. Quinta-feira, 21h30, a Malu chega da rua com uma cara de cansada, alguns pacotes aos ombros e muito lenta. Passa para o quarto e volta na sala em seguida e, como um olhar de gato faminto, me pergunta mais uma vez:

____ Ru – ela resolveu mudar meu nome – vamos comigo ao casamento da Jô?

____ Ene ah oh til.

Ela apenas virou, fechou a porta do quarto e não deu mais o ar da graça.

Alguns minutos depois eu não conseguia mais ler nada. Entrei naquele estado em que só mulheres conseguem deixar um homem, me sentindo cheio de culpa e tentando entender por que estava daquele jeito.

____ Caramba, já são mais de 22h, onde vou conseguir um terno a tempo. A cerimônia é as 10h… – Como um estalo, um plano infalível me veio a mente.

Liguei para casa dos meus pais, falei com minha mãe e perguntei se podia separar um terno do meu velho, pois iria precisar logo cedo (temos o mesmo porte físico, tamanho não seria uma preocupação). Ela relutou um pouco, querendo saber as circunstancias, pois também sabia que não usava terno sem um bom motivo. Ela cedeu rápido quando disse que era um casamento e que havia esquecido. Colou.

Logo que o sol bateu o ponto peguei a bike e pedalei até ao encontro do terno, pois teria que atravessar a cidade inteira, cada segundo era precioso. Quando cheguei ao apartamento dos velhos, eles estavam a mesa, tomando café. Notei que ficaram assustados com minha pressa e com a espontaneidade que estava falando. Minha mãe levantou e me fez acompanhar. Ao atravessar uma das salas passei na frente de um móvel antigo, espelhado, cheio de cristais e, mesmo com um reflexo muito distorcido, pude perceber que meus cabelos, da cabeça e do rosto, não estavam nada compatíveis com a situação.

____ Caramba!

____ O que foi, menino? – Minha mãe perguntou tão espantada quanto eu.

____ Preciso cortar o cabelo.

____ Eu te digo isso há alguns anos… Vamos, que eu resolvo isso também.

Não lembrava, mas quando era garoto e a família ainda era família por inteiro, era a mãe que cortava os nossos cabelos e as vezes da vizinhança, para fazer um dinheiro extra.

____ 9h30! Preciso de um táxi! Tenho que pegar a Malu e seguir para cerimônia.

____ Quem é Malu?

____ Ah, mãe! Não é hora para interrogatório! Ela mora comigo e foi quem me convidou para o casamento.

____ Sei… – Resmunga ela com ar de delgado investigando o único suspeito de um crime – Não chama táxi. Tome as chaves do meu carro, não vou usá-lo hoje. Mas quero você aqui no fim do dia com ele e com uma boa explicação para essa tal Malu.

Mesmo sabendo que a Malu sairia no último minuto possível talvez não desse tempo para chegar de surpresa e encontrá-la no apartamento. Pensei rápido em uma desculpa e liguei pro seu celular.

____ Malu, ainda está no ap?

____ Estou… – o ar de desamparo continuava na sua voz.

____ Então não sai agora. Estou de carro, indo aí. Te deixo no casamento.

Quando cheguei estava sem as chaves, então apartei a campainha. Ela abriu lentamente a porta e, ainda meio cabisbaixa, me fez lembrar do dia que chegou no apartamento. Foi levantando a vista, conferindo cada centímetro, de baixo para cima. Quando me olhou nos olhos, já estava de boca aberta e me deixou com duas certezas: Ela demorou alguns muitos segundos para me reconhecer e faltou força nas pernas.

Levantei as chaves e perguntei:

____ Vamos?

O telefone tocou. E o Ruben continuava imóvel no sofá olhando fixamente para o Tzu – o peixe de estimação dele. O telefone tocou novamente. E eu continuava olhando fixamente para os meus livros de Literatura Mulherzinha que chegaram minutos antes pelo correio. O telefone tocou mais e mais. E o Ruben me olhou feio. E, então, percebi que se tratava do meu celular. Atendi.

Do outro lado da linha, uma voz doce gritou meu nome. Parecia muito feliz e um pouco mais eufórica do que eu. Era Joana. Uma das minhas amigas mais feias da escola. Uma das poucas com quem ainda falava pelo telefone. Joana era também a que mais amava o vernáculo. Sempre disse que casaria com o homem que lesse suas palavras e não com aquele que apreciasse suas curvas. Curvas estas que ela realmente não possuía. Joana tinha cara de canela e pernas estúpidas, como naquele poema de Bandeira. Mas tinha mente criativa como a de poucas pessoas.

Ao contrário de Joana, eu nunca pensei em casar. Eu nunca soube que tipo de homem faria par com uma mulher excessivamente falante, apreciadora de um bom milk shake e de uma boa pizza de microondas. Lembro que durante algum tempo da vida, os meus únicos sonhos estavam bem distantes da vida a dois. Eu queria ser independente, empresária e saxofonista. A busca pela independência continua até os dias de hoje. Mas o sonho de ser empresária morreu junto com o de ser saxofonista, assim que uma tia minha disse que pessoas de negócios são seqüestradas com freqüência e saxofonistas morrem jovens com câncer no pulmão. Mudei de idéia imediatamente.

Eu mudei alguns sonhos, esqueci outros, realizei outros tantos e o mesmo deve ter acontecido com a Joana. Ela ligou para me avisar que vai casar em algumas semanas com um professor de Teoria Social de uma faculdade renomada em qualquer lugar aí pelo mundo. Em outras palavras, um cara que certamente deve apreciá-la pelo cérebro e não pelo corpo que ela tem. Parece que o período entre o namoro e o casamento foi bem rápido. Tudo na mesma velocidade em que eu corto de cabelo, troco de roupa e me apaixono por um sapato na vitrine.

Ao desligar o telefone, eu estava tão feliz que me deu até vontade de dançar, porém com um probleminha. Jô, como eu a chamava, disse que seria de bom tom que eu fosse acompanhada por um rapaz interessante e excêntrico, uma vez que todos os familiares e amigos do casal já eram casados, ou qualquer coisa parecida com isso, e eu ficaria um pouco ‘deslocada’ caso aparecesse sozinha. Eu sou capaz de fazer amizade em qualquer lugar. Decididamente esse não seria o meu problema, mas como ela pediu, então, comecei a pensar em alguém bem rápido.

Primeiro me veio à mente o Ted. Ele é meu amigo gay dos tempos da faculdade. Rapaz com estilo próprio, amante de filmes franceses, falante de alemão e admirador de uma boa música irlandesa. Apesar desse curriculum, eu lembrei que ele não era a melhor pessoa pra celebrar a felicidade no amor de alguém. Ainda sofre muito com os chifres do último relacionamento. Pensei no Rico, no Zé, no Carlitos e no Alê. Mas acho que nenhum deles se disponibilizaria a usar terno e gravata e, menos ainda, a ir a um casamento.

Foi, então, que no meio do meu pensamento silencioso ouvi um barulho. Caminhei pra cozinha e avistei Ruben expressando ódio pela panela que havia caído em seu pé. Coisas assim aconteciam sempre que o Ruben tentava fazer amizade com a cozinha. Ao ver aquela cena patética, o Ruben, a panela, o pé, o chão, eu pensei: por que não?

Enquanto o Ruben xingava até a décima geração da panela, eu imaginava quão simpático ele ficaria dentro de um terno. Até que por trás daquele ar meio rústico e pouco elegante, morava um sujeito com potencial pra meu acompanhante, pensei eu. Só que agora eu tinha outro problema. Como eu, chata, falante, implicante, louca, desmemoriada, ou seja, pessoa completamente sem credibilidade no mercado, iria convencê-lo a ir comigo no casamento da minha amiga Joana?

Filme mudo

Posted on: 2009/07/13

Quando garoto tinha facilidade de me relacionar com adultos. Tinha papos inúteis para eles, mas muito significantes para mim. Meu jeito de argumentar sobre brinquedos e desenhos animados costumava derrubar o jeito sério de boa parte dos colegas ranzinzas do meu velho. Aliás, alguns desses colegas de meu pai estavam na minha lista de amigos. Conversava sem medo sobre todo tipo de assunto. Adulto é sempre cheio de segredo, sabia que podia confiar sem ter que pedir para que não contasse a ninguém.

Francisco era o mais próximo, entre todos, de um braço direito para o coroa. Pra mim ele já era meu esquerdo e, como ninguém ocupava a vaga de braço direito, logo, logo seria promovido. Conversávamos sobre todo tipo de amenidades e andávamos sempre juntos, pois meu pai, que não me acompanhava, sempre o colocava para resolver as coisas que eu queria fazer com quem devia ter vindo com certificado de melhor amigo desde a hora do meu parto. Foi uma lastima para mim Xiko ter desistido da promoção.

Dentre as muitas histórias que lhe contava uma delas fez muita diferença. Não só na proximidade que tinha com ele, mas mudou bastante minha sociabilidade. Estava próximo de terminar o terceiro bimestre da 6ª série e eu contei a Xiko que estava pensando em reprovar em matemática só para irritar o velho. Já que não tinha atenção dele por bem, teria por mal. Ele deu muita risada e deixou claro que concordava com o que havia lhe confidenciado. Dois dias depois meu pai estava no colégio entrevistando a professora sobre mim e meu desempenho. Entendi tudo: Xiko linguarudo. A professora falando a verdade me ajudou muito com elogios significantes, mas suas ultimas palavras – parece ser desatenção ou proposital – botaram tudo a baixo e eu consegui o que queria, muita atenção de meu pai.

O desfecho em casa não preciso comentar. Mas o desfecho em mim foi longo e tortuoso. Toda a fé que eu tinha nos homens sumiu. Falando muito, confiando demais em que não devia e com uma pitada de inocência, aprendi sobre quão valioso é o tal do silêncio. Eu consegui durante os anos seguintes voltar a ter fé nas pessoas, mas descobri que a minha história, pensamento e opiniões são responsabilidade minha, ninguém mais precisa saber. Continuei conversando com Xiko como se nada tivesse acontecido, mas transformei os assuntos amenos em amenidades ainda maiores. Nas poucas vezes que ele tentou questionar eu respondia:

____ Relaxa. Coisa de adolescente revoltado.

A Malu parece que percebeu que não tem jeito de me fazer falar muito e resolveu me imitar. Agora ela não fala mais. Aliás, ela fala muito, mas não comigo. As paredes e o vento são seu divã. Do nada, dias atrás ela passou por mim e questionou:

____ Nossa! Está quente hoje, não acha?

____ Sim, está quente – Respondi sem notar, pois na verdade não estava quente. Estava próximo de começar o inverno e a temperatura estava agradável. Não entendi.

Depois que ela resolveu dividir seu tempo em horas de falar muito e horas de ser muda eu comecei a notar que quando está calada ela balança sempre a cabeça como se estivesse dizendo não para alguém. E isso começou a me deixar nervoso. Se não bastasse, os assuntos que ela toma para me puxar para uma conversa são quase sempre nostálgicos. Da ultima vez, eu foleava o Sun Tzu e ela chegou perto falando de seu tempo de universidade.

___ Ruben, não sei como você lê essas coisas. Esse negócio de Sócrates, Platão, é tudo muito chato. Nunca entendi o que era pré-socrático, pós-socráticos ou intra-socrático. A coisa mais legal das aulas de filosofia era o professor, que homem charmoso. Poder! (…, …, …)

Eu sei que filosofia é sinônimo de loucura, mas entre Sócrates e o Sun Tzu só há relação no S. Fiquei desnorteado tentando entender onde ela queria chegar com aquele papo Platônico. Quando notei que começar o modo tagarela tive que interromper.

___ Malu, sei que você não gosta de ler sobre filosofia como eu as vezes me meto a fazer, mas eu não consigo entender como você consegue lembrar da cor do cabelo e o penteado de um professor da universidade e esquece até onde colocou as suas chaves cinco minutos antes.

Ira. Esse foi a expressão que ela fez ao me encarar e deve ter mantido depois que saiu pisando forte e batendo a porta do apartamento atrás dela.

___ Dias piores virão.

Soltei o livro e fui tentar encontrá-la, pensando mais uma vez sobre silêncio.

Reticências

Posted on: 2009/07/12

Com o tempo, Rubens e eu adotamos algumas estratégias de convivência. Ok. Eu confesso que adotei por nós dois. Como eu falo muito e ele quase nunca responde, nós decidimos que eu ia continuar falando e ele ia continuar calado. Na verdade, nós nunca conversamos sobre essa decisão. Mas eu entendi que assim seria melhor pra nós dois. Eu falo, ele finge que não escuta e a vida segue.

Eu li em alguma revista moderna contemporânea que tudo é possível na combinação de um casal formado por uma mulher amarga e um homem calado. Tudo bem que casal não é a palavra para o momento.  E eu também não sou amarga, sou até muito agridoce, mas calado o Ruben é. E isso me irrita. O homem que bem soubesse não irritaria uma mulher, muito menos uma mulher  maluca, falante e de unhas vermelhas.

O Ruben é o tipo de cara que sente calor e fica calado. Ah, eu não aceito!!! Eu sinto calor e debato sobre o aquecimento global, a falta de consciência das pessoas sobre o meio ambiente e ainda relembro o meu desejo adolescente de ser ativista. Sim. Eu quis ser ativista, porém confesso que nunca soube ao certo o que isso significava. Mas sempre me imaginei respirando o ar puro e vivendo em contato com a natureza no Central Park, em Nova York.

O fato é que eu gosto do debate, das discussões acaloradas sobre qualquer coisa, desde que eu possa expressar as minhas teorias universais. Homem devia entender que mulher precisa falar para se sentir viva. Pelo menos, o Ruben devia. Mas a única coisa com a qual ele se preocupa,  é com os livros de tecnologia, filosofia ou quadrinhos. Certa vez, eu acho que ele ficou mais chateado comigo do que de costume quando disse que a única coisa que lembrava das aulas de filosofia, era de uma bronca que levei do meu professor por não saber responder uma pergunta sobre pré-socráticos. Até hoje num faço idéia do que seja pré, pós ou qualquer coisa socrática, mas guardo na memória que o  professor era um coroa grisalho muito charmoso.

Ao ouvir o meu comentário, o Ruben levantou levemente a sobrancelha e, finalmente, expressou algum sentimento por mim depois de algum tempo de convivência.

__ Taí uma coisa que irrita muito em você, Malu: a sua memória para assuntos nada relevantes.

E ali eu entendi que os nossos problemas de convivência faziam parte de uma longa história que ainda estava só no começo…

Essência

Posted on: 2009/07/03

Estava uma noite calma. Perfeita para dar uma volta. Até estrelas lembro de ter visto pela janela.

A Malu já devia ter visto. Sua produção de sempre não era a de sempre. Muito mais tempo no banho, muito mais tempo no quarto, centenas de idas e vindas entre quarto e banheiro. Tenho certeza que aquela não era um noite especial apenas para os astros.

Uma fogueira, alguém tocando violão e alguns amigos falando bobagens por causa do vinho cairia muito bem para deixar a noite divertida. Mas estava complicado para mim. Urbanismo jamais vai combinar com as boas e simples coisas. Naquela noite só me restava um pouco de leitura. Um vinho talvez. Aquele barato, que está na geladeira há umas semanas, pode ser de uma boa safra.

Nenhum dos livros, de tecnologia, de filosofia ou quadrinhos me fez concentrar. Parecia que eu não estava por completo na leitura, na sala, no tempo. Para quem não sentiu, a forma mais fácil de explicar talvez seja dizer que me sentia vazio. Um vazio pleno, que não me deixava nem mesmo pensar sobre como ou com que completar.

Por um breve instante houve a possibilidade de que isso fosse embora. Senti um cheiro agradável, mas muito intenso. Cheiro feminino, que, tão intenso, só podia ser de uma pessoa.

Toda aquela sensação de agrado, me fez sentir feliz. Era esse o cheiro que ela exalava, de felicidade e, como ela mesma diz, poder. Quando saiu do quarto, olhei pelo canto do olho e escondi um sorriso sereno e teimoso sob as páginas do livro que tinha em mãos. Tentei puxar assunto, mas acho que ela, tão concentrada, não me notou. Passo ante passo ela atravessou a sala e, depois de uma pausa na porta, saiu. Saiu mas deixou uma parte ali no apartamento, em todo aquela fragrância.

Eu já não estava tão vazio. Agora eu estava distante. Não sei exatamente por quanto tempo, nem fazendo o que, mas estive na varanda do apartamento, olhando para o nada por um bom período. Mas não foi por tempo suficiente para esquecer da imagem da Malu atravessando a sala. Entrei, abri aquela única garrafa de vinho de liquidação. Fazia planos de por fim a ela quando escutei a porta sendo aberta.

A Malu que saiu não era aquela que estava voltando. Ela não precisou nem terminar de trancar a porta, notei que tudo aquilo que tinha de positivo na sua saída ficou em algum lugar por onde esteve. Se enrolava pra trancar a porta com as três ou quatro chaves do molho, sua postura ereta e confiante se transformara na de alguém curvo, cabisbaixo, como quem desiste da vida.

___ Voltou cedo, Malu?

Tão rápido quanto fui para puxar assunto, fui para perceber tamanha a minha idiotice ao perguntar aquilo. Uma saraivada de agressões foi que esperei. Mas não veio. Silêncio. Uma pausa. Se apoiando na parede ela parecia tentar descobrir onde estava e quem estava falando. Não tinha dúvida, era algo realmente grave. Cheguei a pensar que era alguma coisa de saúde.

___ Senta aí e toma um vinho comigo?

Malu se recompôs lentamente e, ainda muda, se aproximou. Parecia muito distante. Ainda perguntei se estava se sentindo bem, mas ela pareceu não ouvir nada. Ficou ali, sentada e olhando para o nada. Lhe entreguei uma taça de vinho e respeitei seu silêncio. Nada mais foi dito naquela noite. Nenhum aroma, nenhum sorriso, a Malu com certeza não estava mais ali.

Como de costume, acordei cedo. Estávamos quase nas mesmas posições de quando bebíamos vinho. Malu apoiada no meu colo, dormia profundamente, inocente a tudo que havia lhe acontecido durante a noite. Dormia profundo ainda, pois nem se mexeu enquanto a ajeitava no sofá. Não somos bons amigos, mas me senti envolvido como se nos conhecêssemos desde a infância.

Recolhi a garrafa, copos, revisei a porta e achei o bilhete que ela havia deixado antes de sair: Não volto antes do amanhecer.

Fui dormir mais um pouco, mas ainda sentia cheiro de Malu por toda parte.

Eu comprei roupa nova, pintei as unhas de vermelho, escolhi meus sapatos mais luxuosos, pesei na make up e treinei o carão no espelho. Tava transpirando poder quando saí do quarto e dei de cara com o Ruben deitado no sofá lendo alguma coisa que só ele entende.

Ele me seguiu discretamente com o olhar, mas não teve coragem de perguntar onde eu ia. Eu fingi que ele num tava lá e sai pela porta, deixando pra trás o cheiro do meu perfume mais caro  e um bilhete colado na porta dizendo que não voltava naquela noite.

Chegando no lugar onde eu havia marcado um encontro, sentei lindamente no bar e fiz cara de mulher solteira, resolvida, descolada, moderna, feliz e com o controle da situação. Pedi um drink de nome difícil e comecei a esperar. O relógio marcava 10:15 quando iniciou um longo período de espera por quem não ia chegar. As 11:15, metade do meu charme tinha ficado em uma das 7 vezes que fui ao banheiro retocar o batom. Me bateu um desespero e resolvi ir embora. Na verdade, resolvi sair correndo do lugar. Minha vergonha era tanta que a única coisa que eu conseguia pensar era em não olhar pra trás.

Eu voltei pra casa de táxi, arrasada, me sentindo a pessoa mais infeliz do mundo e achando que a culpa era dos meus sapatos luxuosos. A raiva era maior do que o meu vestido e menor do que o meu brinco. Mas era o suficiente pra eu querer morrer.

Quando eu pisei no corredor do apartamento 172, eu lembrei do bilhete na porta, da esnobada no Ruben e do quanto ele ficaria feliz em me ver arrasada daquela forma. Meu mundo caiu. Mas como eu não tinha pra onde ir, eu respirei fundo, torci pra ele está dormindo e abri a porta bem devagarzinho. Só que ao pisar no ap, logo ouvi uma voz dizendo:

___ Voltou cedo, Malu?

Eu quis chorar. Eu quis gritar. Eu quis morrer. Eu quis tanta coisa que num deu tempo pensar em nenhuma resposta inteligente, madura, bem resolvida, descolada e com o controle da situação. Eu até tentei, porém não consegui dizer nada. Então, o Ruben me fez um convite:

___ Senta aí e toma um vinho comigo?

As minhas pernas tremiam tanto, meu coração batia tão acelerado, meu descontrole era tanto que a única coisa que lembro foi que eu sentei no sofá, exatamente como ele pediu.

Ele entregou a bebida na minha mão.

Não me lembro de termos nos olhado.

Não trocamos mais nem meia palavra naquela noite.

Fomos apenas companheiros no silêncio.

Núcleo

Posted on: 2009/06/24

Costumo passar o dia fora. Mochileiro precisa de resistência e meu exercício, para conseguir o mínimo, é rodar pela cidade. Visito alguns poucos amigos e conhecidos, as vezes dou uma passada na frente do escritório do chefe (do país) e, quando dá, estico até Águas Lindas (não sei o que vejo ali, acho que o nome tem alguma força magnética – ou hidráulica). O importante é estar em movimento.

Movimento não parece ser algo que faça parte do dicionário de bolso da minha parceira de apartamento. Quase todas as vezes que passo muito tempo fora, quando chego, ela está em casa. Seja pela manhã, tarde, noite ou madrugada. A vantagem é que funciona como uma equipe de vigilância. Uma pena é reconhecer minha ilusão quanto a isso.

O interessante é que mesmo tendo esse hábito de se manter em casa, a Malu some. Simplesmente desaparece. Passa dias fora e quando retorna, com cara de que foi abduzida, ela juntou muita coisa pelo caminho. Chega cheia de sacolas, caixas, pacotes e, as vezes, até com caminhões abarrotados de coisa. Um dos retornos triunfantes dela foi depois de um ‘pulinho a São Paulo’ – como ela mesma disse.

Nesse dia, não sei por sorte ou azar, estava em casa quando escutei o som de um caminhão estacionando lá em baixo. Em seguida aquele barulho inconfundível de salto alto arrastando no piso, seguido de muito burburinho. No meio de toda quela barulheira eu reconheço a voz da Malu. Do pouco que deu para ver e ouvir pela janela, ela estava atuando de manobrista de sofá. Os funcionários da transportadora sofriam muito mais com a zoada e alvoroço da Malu que com o peso da mobília.

Notei que muita gente do condomínio deu notícia da chegada daquele sofá amarelo-núcleo-do-sol, pois a comitiva de recepção estava nas janelas e varandas, convidados por notas que ecoavam pelas paredes dos blocos. Quando a barulheira se aproximou da porta eu fui abrir e tentar ajudar, para que toda aquela peregrinação tivesse um final feliz para todos. Já era tarde, algum desastre já acontecera, pois enquanto caminhava até a porta, o som de plástico se espalhando pelo chão, era acompanhado de gritos de socorro e pancadas secas nas paredes. Por fim, uma forte batida do outro lado da porta serviu de deixa para uma avalanche de xingamentos dos mais cabeludos, alguns capazes de render excomunhão.

____ (…) aquele chato idiota nunca está em casa. Não serve nem para abrir a porcaria dessa porta.

Foram as palavras conjuradas no mesmo instante em que abri a porta, fazendo a Srta. Boca Suja bater outra vez com a cabeça, só que agora no chão, aos meus pés.

____ Bom dia, Malu.

Sempre que eu fazia alguma bobagem, eu pedia desculpas pro Ruben ou pelo menos tentava. Mas ele sempre me olhava tão feio que, às vezes, eu achava que ele achava que morar comigo era como esperar diariamente por um atentado terrorista.  Muita tenso.

Ao contrário de mim, que passava a maior parte do tempo cantando, tentando fazer miojo, pintando as unhas de vermelho e mudando alguma coisa de lugar, ele passava muito tempo calado, trancado no quarto ou, então, sentado na sala me observando de canto de olho. Isso quando não tentava me explicar as dinâmicas de se viver coletivamente. Até parece que eu precisava de orientação. Eu sei fazer tudo e qualquer coisa. Sou descolada. Pelo menos, era o que o meu último namorado dizia. Ok. Eu concordo que último namorado não é referência pra nada. Mas que ele dizia, ah, ele dizia!

Falando em relacionamento, nunca ouvi o Ruben falar sobre suas namoradas. Mas também eu confesso que nós não  conversávamos muito até aquele momento. Geralmente, a gente só tentava alguma comunicação quando um de nós estava bêbado.

Num desses dias em que ele chegou em casa de porre, caiu no sofá, colocou pra tocar o álbum favorito dele – Pulse, do Pink Floyd, gritou pelo meu nome e disse que nós precisávamos conversar. Eu achei estranho, mas me aproximei:

___ Não se faça de MALUca. Responda. Onde está a minha Monalisa?

___ Eu lá sei das suas mulheres.

___ E quem falou de mulher?

___ Você.

___ Eu não falei de mulher. Eu falei do meu álbum do Pink Floyd.

___ A sua Monalisa eu num sei onde tá e o seu maldito álbum tá tocando agora. Você num tá ouvindo? Tá surdo?

___ E como isso aconteceu?

___ O quê?

___ Como o álbum reapareceu sem eu perceber?

___ O álbum num reapareceu. Ele sempre esteve no mesmo lugar.

___ Mentira. Você queria levar a minha Monalisa.

___ Escuta aqui….eu nem de mulher gosto. Num sei quem é essa tal de Monalisa. E tô pouco me importando com os seus álbuns.

Foi então que o Ruben começou a rir sem parar. E eu nada mais entendi. Ele ria e me olhava, e ria, e me olhava, e, às vezes, me olhava e ria tudo junto. Eu desisti de tentar conversar e fui saindo da sala. Mas quando eu me afastei, ele gritou meu nome mais uma vez:

___ Maluuuuuuuuuuuuuuuuuuu.

___ que é?

___ Eu gosto dos seus tornozelos.

Essas foram suas últimas palavras, antes de dormir profundamente até a manhã seguinte, num sofá amarelo, coberto com um tecido indiano, que eu comprei na 25 de março.

Meus avós não estão mais comigo, mas muito coisa deles continuam em mim.

Não sei de onde saiu minha admiração por tornozelos femininos. Acho que por serem mais raros que a preferencia nacional abundante. Lembro que minha avó materna sempre repetia sobre mulheres de largos mocotós serem sempre preguiçosas ou desastradas.

No primeiro dia de Malu como companheira de apartamento eu te mostrei novamente o ambiente e, já que estávamos dividindo o teto, o chão e paredes, achei por bem falar sobre as poucas coisas que tenho algum cuidado. A maioria delas estavam no meu quarto. Um computador velho, uma tv de 14″ digna de ser matéria de revista eletrônica, meu diskman e alguns CDs que comprei durante minhas viagens. Estes, sem dúvidas, os que mais cuido.

O interessante era que ela parecia distante enquanto eu falava, mas mudou de ares e ficou atenta no momento em que mencionei privacidade. Os quartos são como nossas casas dentro do apartamento, o único cômodo que merecia maior respeito. Preciso de permissão para entrar no dela e ela para entrar no meu. Essas observações eram minha contribuição com a chatice do recinto.

Depois de quase uma semana, quando voltava pra casa no fim da tarde, sempre era surpreendido com uma novidade nada agradável. Descobri nestes primeiros dias que minha avó não me falava sobre uma máxima. Tudo ela dizia sobre tornozelos era uma premonição sobre minha vida futura. Já presente agora.

Não entendi o poder da Malu em deixar um ambiente vazio, bagunçado com coisa nenhuma. Ela era muito cuidadosa consigo, mas seus cuidados doméstico eram de quem tinha 3 anos de idade. Ela refez a decoração com todo tipo de objeto estranho, antes guardados em suas bolsas. Seu quarto, a sala, cozinha, meu quarto e todo o resto receberam objetos novos. Todos os dias, tudo novo. Era como se todo o apartamento tivesse se tornado o seu quarto. Seu quarto bagunçado. Mas enquanto tudo fosse novo pra mim e de sua propriedade, tudo bem.

Quando viajava, sempre acabava encontrando um álbum de uma banda ou artista que refletisse o que foi a viagem. Como uma coleção de fotografia, meus CDs eram minhas recordações, as pedras do caminho. O que mais venerava era o álbum Pulse, do Pink Floyd. Sua primeira tiragem tinha um detalhe diferente, um pequeno led vermelho piscante, trocadilho com o título. Muita gente me ofereceu muito dinheiro por esse disco e eu nunca me desfiz. Ele era como um Monalisa para mim.

Era sim. Foi. Ou melhor: foi-se!

A maluca da Malu conseguiu sumir com meu CD. A caixa parecia ter sido atropelada. O detalhe do led estava morto, pressão muito a baixo de zero. E o disco. Bem, o disco espero que esteja bem e um dia me escreva. Eu perguntei o que havia acontecido, onde estava o CD, mas ela parecia ter sido possuída quanto realizou o ato, seja lá qual tenha sido, e repetia apenas que não sabia sobre o ocorrido. Eu não era o pai da sujeita, não a conhecia e não teria como dar-lhe um verdadeiro sermão ou palmadas a moda antiga. Mesmo assim ela conseguiu disparar os meus genes paternos e ainda ouviu muita coisa.

A única coisa que sei agora é que arrependimento não mata.

Buzz

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